Os dois Celtics de Neemias Queta
Com o poste português em campo, Boston compete com qualquer adversário; sem ele, parece uma equipa de «lottery». Os bloqueios, a defesa e as oito «screen assists» frente aos Clippers explicam o fosso.
Os Boston Celtics ganharam aos Los Angeles Clippers por 121-118, mas o resultado diz menos do que devia. O jogo de domingo em Boston foi sobretudo uma radiografia clara ao estado atual da equipa: há um conjunto que se parece com uma equipa séria… e há outro conjunto que parece exatamente a tal equipa de lottery que muitos previam para esta época. A linha que separa uma versão da outra está, neste momento, no mesmo sítio onde se colocam os bloqueios: junto ao corpo de Neemias Queta.
Em 33 minutos e 28 segundos, o poste português somou 14 pontos (7/16 lançamentos de campo), 9 ressaltos, um box plus/minus de +16 e, mais importante do que tudo, oito screen assists que resultaram em 21 pontos. Logo no primeiro ataque organizado, atrasou James Harden o tempo suficiente para libertar Payton Pritchard para o primeiro de oito triplos. A seguir, abriu duas vezes espaço a Derrick White para lançamentos frontais de três pontos. Durante grande parte da noite, cada vantagem relevante no ataque dos Celtics começava no mesmo gesto: um bloqueio bem plantado de um poste que quase não precisa de lançar para mexer no marcador.
É um jogo de novembro, mas o padrão já não é amostra curta. Catorze jogos depois, e com o máximo de minutos da carreira frente aos Clippers, o retrato é nítido: há uns Celtics com Neemias, e há uns Celtics sem Neemias.
Um fosso de 30 pontos em net rating
Na última edição do Queta Report, o ponto de partida era simples: com Neemias em campo, os Celtics apresentavam um defensive rating de 99.2 pontos sofridos por cada 100 posses de bola e um net rating de +18. Nessa altura, já se sabia que o português estava no topo da NBA em impacto líquido, entre jogadores de Oklahoma City Thunder e Denver Nuggets.
Os dados entretanto publicados nas últimas horas empurram esse quadro ainda mais para o extremo. Segundo os números compilados pelo jornalista Zack Cox, os Celtics têm um net rating 32.4 pontos melhor com Neemias em campo do que quando ele está no banco, de acordo com o site Cleaning the Glass. É o melhor diferencial de qualquer poste na NBA, quase 10 pontos acima de Nikola Jokić. Numa equipa que regista 50% de vitórias, Neemias surge ainda com o 10.º melhor box plus/minus absoluto da liga; os nove jogadores que o superam pertencem a Thunder, Nuggets, Houston Rockets e New York Knicks, todas equipas com registos de topo.
Na prática, isto significa que, nos minutos do português, Boston comporta-se como um coletivo de primeira linha. Quando ele se senta, aproxima-se daquilo que o texto de Michael Pina no site The Ringer, na semana passada, descreve: um plantel magro, vulnerável, que vive num fio entre a lotaria e a sobrevivência.
O ataque que nasce num bloqueio
Se a diferença entre as duas versões dos Celtics — com e sem Neemias Queta — é brutal, o caminho até lá começa, quase sempre, no ataque. A vitória sobre os Clippers cristaliza a tendência: Neemias não marcou nenhum triplo, mas esteve diretamente ligado à noite mais eficiente da época atrás da linha dos 7,25 metros. As oito screen assists que geraram 21 pontos são o lado mais visível de um gráfico que tem vindo a subir desde outubro.
O gigante do Vale da Amoreira é, neste momento, o jogador que mais pontos gera na NBA a partir de screen assists. O internacional português soma 129 pontos criados via bloqueio, ligeiramente acima de Alex Sarr (127) e à frente de nomes como Rudy Gobert (121), Domantas Sabonis (120), Jusuf Nurkić (114) e Isaiah Hartenstein (113).
Do lado de cá do Atlântico, Rafael Lisboa, que jogou com Neemias no Benfica, nas seleções jovens e na Seleção A, descreveu, no Queta Report, o mesmo fenómeno numa linguagem mais prática:
“A velocidade com que ele bloqueia e rola para o cesto é absurda. E ele é um bloqueador muito inteligente: sabe quando é que tem de mesmo ‘bater’ no defensor, quando é que basta tocar e rolar, quando é que tem de abrir o bloqueio para o base ter mais espaço. Para um base é tudo o que se pode pedir.”
Lisboa sublinha ainda a importância dos ângulos de saída e da percepção de espaço: um bloqueio de Neemias não é apenas um contacto físico, é uma decisão sobre como e onde o defensor vai ficar preso. A combinação dessa técnica com a explosão no roll obriga as defesas a escolher: proteger o cesto e libertar lançadores, ou ficar no portador da bola e permitir que o poste apareça sozinho nas costas.
Defesa agressiva, âncora estável
Se o ataque ganhou estrutura com um poste que fabrica triplos através de bloqueios, a diferença mais chocante entre as duas versões dos Celtics 2025-26 continua, no entanto, a ser a defesa.
Boston está entre as últimas equipas da liga em pontos de contra-ataque, pontos na área pintada, taxa de assistências e pontos de segunda oportunidade concedidos. Ofensivamente, apresenta ainda um dos piores shot profiles da NBA, com a equipa em 30.º em frequência de lançamentos junto ao aro, 1.º em lançamentos de média distância e entre as que mais lançam pull-ups de dois pontos.
Ao mesmo tempo, os Celtics forçam turnovers ao ritmo mais alto da última década, pressionam em todo o campo em quase 10% das posses de bola, lideram a liga em diferencial de lançamentos tentados e continuam a proteger o cesto ao nível de uma equipa de topo. A contradição resolve-se no ponto onde a defesa mais arrisca: se os exteriores podem pressionar é porque atrás está um poste que baixa a eficácia de lançamento dos adversários de forma quase absurda.
Os números que circularam nos últimos dias reforçam esta ideia. De acordo com o beat reporter Jack Simone, a eficácia de lançamento efetiva (eFG%) das equipas adversárias cai cerca de 10 pontos percentuais quando Neemias está em campo, um valor que o coloca no percentil 100 (!) da liga, com mais de 300 minutos jogados. Nos lançamentos tentados pelos jogadores que são defendidos diretamente pelo internacional português de 2,13 metros, a percentagem de conversão fica 9.3 pontos abaixo do esperado, segundo os modelos de tracking da NBA.
Escrito em linguagem simples: quando o português está em campo, os ataques adversários transformam-se numa versão mais fraca de si mesmos. E isso acontece tanto no quadro coletivo como no confronto individual.
Mazzulla Ball versão Neemias
A teoria de Michael Pina é que os Celtics 2025-26 estão a viver a pior versão de Mazzulla Ball: muito lançamento exterior, pouca pressão no aro, falta de lances livres, dificuldades no ressalto, mas com uma defesa mais ativa do que nunca. Em vez do ataque clínico e repetitivo que levou ao título, o conjunto vive agora de caos controlado: pressiona, corre, força erros e tenta compensar a falta de talento puro com volume de posses de bola.
Nesse contexto, Neemias funciona como sistema operativo. Permite à equipa:
ser agressiva no perímetro, porque protege o cesto com eficácia de elite e baixa a eficácia de lançamento dos adversários em 9.9%;
construir parte relevante do ataque a partir de pick-and-roll e short roll, com alguém que lê a ajudas e encontra cortes e lançadores;
estabilizar o ressalto ofensivo, aumentando o número de posses de bola em noites em que o shooting não acompanha.
A grande questão, como é normal em novembro, é a sustentabilidade: quanto deste impacto resiste à amostra maior, à adaptação dos adversários e às inevitáveis regressões estatísticas? Mesmo assumindo que muitos destes picos vão descer, a combinação de liderança em pontos a partir de screen assists, impacto defensivo medido por diferentes modelos e consistência de execução dificilmente desaparece por completo.
De garbage time nas Festas de Albufeira a titular na NBA
Quando se ouve Rafael Lisboa contar a história da primeira vez que jogou contra Neemias — uma final da Festa do Basquetebol Juvenil, em Albufeira, entre as equipas Sub14 das Associações de Basquetebol de Lisboa e Setúbal, com o poste a sair do banco nos minutos finais de um jogo decidido — a distância até à titularidade dos Boston Celtics parece quase ficção. Pouco tempo depois, na Proliga e no Benfica, era simplesmente grande demais para a realidade portuguesa. Hoje, depois de anos a esperar pela oportunidade certa na NBA, é o jogador que, em catorze jogos, passou a marcar a fronteira entre duas versões da mesma equipa.
Há os Celtics com Neemias, que defendem como uma das melhores equipas da liga, geram triplos a partir de bloqueios, protegem o aro com eficiência de elite e jogam ao nível das melhores em termos de net rating. E há os Celtics sem Neemias, que voltam a parecer aquilo que muitos anteciparam: um grupo jovem, curto, em gap year, a meio caminho entre a lottery e a esperança.
Num contexto em que a temporada está, assumidamente, longe de títulos e perto de decisões estruturais, uma coisa parece cada vez mais difícil de ignorar: se Boston quiser ser mais do que uma equipa de lottery bem treinada quando Jayson Tatum regressar, terá de tratar Neemias Queta como aquilo que os números, o vídeo e os colegas já mostram que ele é. A referência que separa as duas versões desta equipa.
Como é partilhar o campo com Neemias Queta?
Treze jogos depois de assumir a titularidade nos Boston Celtics, Neemias Queta regista novos máximos de carreira em ressaltos, assistências e roubos de bola, atingiu a marca dos 500 ressaltos na NBA e assinou alguns dos melhores jogos desde que entrou na liga, frente a Cleveland Cavaliers, Washington Wizards e Memphis Grizzlies. A equipa tem um registo negativo (6-7), mas os números do poste português contam outra história.






