O quarto de época que mudou os Boston Celtics
O impacto do português Neemias Queta ajudou a desmontar a narrativa do “ano de transição” e acelerar o calendário competitivo em Boston.
Não há melhor resumo dos novos Boston Celtics do que a noite fria de 29 de novembro em Minneapolis. Jaylen Brown fez 41 pontos com linha estatística de all-around player, Neemias Queta voltou da entorse no tornozelo com 19 pontos e 18 ressaltos na cabeça de Rudy Gobert, e mesmo assim Boston perdeu (115-119) porque Anthony Edwards decidiu fechar o jogo como se estivesse num workout particular.
Um quarto de época depois, os Celtics são melhores do que muita gente previa, mas continuam a viver no limbo. E esse limbo passa, quase sempre, por um poste de 26 anos que nem sequer era considerado “titular legítimo” em outubro.
De ano de transição a equipa incómoda
Sem Jayson Tatum por lesão no tendão de Aquiles, sem Jrue Holiday, Kristaps Porziņģis, Al Horford e Luke Kornet, e com a folha salarial a ser tratada como prioridade, a narrativa dominante em Boston era de que este seria um gap year. Competir o suficiente para não envergonhar, desenvolver jovens, ficar abaixo do second apron e preparar 2026-27.
Vinte e um jogos depois, o retrato é menos cómodo para quem queria um ano “sem expectativas” e muito mais interessante para quem se preocupa com o médio prazo. Os Celtics têm um registo de 12-9, depois de um arranque 0-3, um net rating de +4.2, o quarto melhor ataque da liga e o 11.º melhor saldo entre pontos marcados e sofridos. São últimos da liga em pace, jogam com paciência quase obstinada, mas estão no top-10 em ressaltos ofensivos e entre as equipas que menos perdem a bola.
O detalhe relevante não está só na classificação. Está em quem estão a vencer. No espaço de cinco jogos, Boston ganhou a Detroit Pistons, Cleveland Cavaliers, New York Knicks e Orlando Magic, quatro das equipas mais fortes da Conferência Este neste início de época. Têm sete vitórias contra equipas com registo positivo e 6-3 frente ao atual top-6 da conferência. E talvez tenha chegado o momento de fazer algo que ninguém queria admitir em setembro: reavaliar expectativas.
Isto não é uma super equipa disfarçada, mas também não é a formação feita para perder com dignidade que alguns antecipavam. É uma equipa boa, não ótima, com teto mais alto do que o discurso do gap year sugeria. E uma parte desproporcionada desse teto está nas mãos de Neemias Queta.
O poste titular que ninguém queria ver
O que era, em outubro, a maior fragilidade do plantel é hoje um dos ativos mais valiosos da organização. Na marca dos 20 jogos, Neemias apresenta médias de 9.8 pontos, 8.5 ressaltos e 1.4 desarmes de lançamento, em pouco menos de 25 minutos, com eficiência alta perto do cesto. Os números crus são simpáticos. O contexto é decisivo.
O internacional português tem um defensive rating individual de 101.8 pontos sofridos por cada 100 posses de bola. Num ano em que Boston perdeu três bigs rodados, foi o gigante do Vale da Amoreira que estabilizou a posição. Os Celtics são uma equipa diferente, quase outra equipa, quando ele está em campo. Modelos de impacto continuam a colocá-lo no topo da liga em diferencial de on/off, com números do site Cleaning the Glass a apontarem para um fosso superior a 20 pontos por 100 posses entre os minutos com Neemias e sem Neemias.
Os jogos recentes só reforçam essa realidade. Frente a Minnesota, voltou da entorse no tornozelo para assinar uma das melhores noites da carreira, com 19 pontos e 18 ressaltos, incluindo oito ofensivos. Contra Detroit, a sua ausência expôs todas as limitações do resto do frontcourt, mesmo numa vitória. Em Cleveland, bastou ficar de fora para Xavier Tillman voltar à rotação. Frente aos Knicks, regressou ao cinco inicial e somou 6 pontos rápidos no arranque de um jogo em que Boston dominou a área pintada por 42-14 na primeira parte.
O discurso à volta da liga acompanha os números. Joe Mazzulla não tem sido tímido: admite que a equipa “é claramente diferente” com o português em campo, sublinha o trabalho diário e fala de responsabilidade acrescida. Mike Brown, hoje nos New York Knicks e antigo treinador de Neemias em Sacramento, foi ainda mais longe antes do reencontro no TD Garden. Disse que não gosta de jogar contra Queta, que “impacta o jogo de muitas maneiras” e que “vai ser bom para os Celtics durante muitos anos”.
No meio de tudo, há um detalhe que vale dinheiro. O contrato de Neemias tem uma team option incluída para 2026-27, e não pesa nada de especial numa folha salarial que tem Brown e Tatum no patamar das superestrelas e Derrick White a subir de escalão. Se Boston conseguir renovar o português num valor intermédio, que reflita o estatuto de titular ou de sexto homem de luxo sem entrar no território das grandes extensões, resolve uma posição crítica com um ativo que já conhece o sistema, o balneário e o treinador.
O que é que a organização vê no número 88?
A questão deixa de ser se Neemias é jogador de rotação e passa a ser que tipo de poste é que o front office acredita que Queta pode ser num contender. O desempenho deste início de época foi melhor do que qualquer pessoa em Boston se atreveria a prever. Os números de on/off, a forma como equilibra o ataque como rim runner e ressaltador ofensivo, o facto de a presença dele tornar menos problemático não ter lançamento exterior, tudo aponta numa direção. A ideia de o ver como titular de uma equipa candidata ao título num ano ou dois já não é fantasia.
Mas há duas perguntas em aberto que só o resto da época e os playoffs poderão esclarecer. A primeira é a capacidade de Neemias ser solução em minutos de final de jogos apertados, quando as defesas adversárias caçam trocas, forçam-no a defender mais longe do cesto e tentam tirar partido de eventuais limitações em mobilidade lateral. A segunda é a gestão de faltas, ainda um ponto sensível quando sobe de volume de minutos.
Por isso, os Celtics podem muito bem acabar a temporada com a sensação de que têm o poste certo para abrir jogos, controlar a tabela, estabilizar a defesa e impor físico nos 20 a 25 minutos centrais, mas ainda precisam de outra peça complementar para lidar com matchups específicos em séries longas de playoffs.
Day’Ron Sharpe como espelho das dúvidas
Segundo Michael Scotto, do HoopsHype, os Celtics tinham Day’Ron Sharpe, poste dos Brooklyn Nets, como um dos alvos prioritários no verão. O perfil fazia sentido. Escolha de primeira ronda em 2021, 24 anos, físico de poste clássico, capacidade de ressalto e produção sólida como suplente. Brooklyn decidiu antecipar-se e fechou uma extensão de dois anos e 12.5 milhões de dólares antes da free agency. Boston, limitado ao mínimo, nunca esteve verdadeiramente em posição de competir do ponto de vista financeiro.
Ainda assim, o detalhe estratégico é menos o valor da proposta e mais o contexto. Se tivesse aceitado o mínimo dos Celtics, Sharpe entraria em campo com “oportunidade legítima” de discutir a titularidade com Neemias no training camp. Não estamos a falar de um corpo para o fim do banco. Falamos de alguém que o próprio front office imaginava a disputar a vaga de número 1 na hierarquia do frontcourt.
O que é que isto diz sobre a forma como Brad Stevens olha para Neemias? Antes de mais, que a organização acredita nele o suficiente para lhe entregar a titularidade num cenário real de gap year, em vez de o esconder atrás de veteranos. Em segundo lugar, que não está disposta a apostar tudo num único perfil. Sharpe representa a ideia de um segundo poste jovem, também controlável financeiramente, que permitiria reduzir o risco. Se um falha, o outro pode segurar o nível mínimo.
Ao escolher ficar em Brooklyn, onde assina 6.5 pontos e 5.3 ressaltos de média e já teve jogos de 16 pontos e 7 ressaltos contra Boston e 17 pontos e 12 ressaltos frente a Houston, Sharpe ajudou sem querer a clarificar o plano dos Celtics. A curto prazo, nada muda. Neemias continua a ser o poste titular, o único que combina defesa de alto nível com presença consistente no ressalto e um mínimo de ligação ofensiva. A médio prazo, obriga o front office a olhar para outras vias.
Próximo passo: parceiro certo para 2026-27
Se Boston quer ter um poste de elite a tempo da época 2026-27, quando Tatum teoricamente regressa, não pode simplesmente ir às compras em julho e voltar a encher a folha salarial de contratos volumosos. O caminho passa por identificar um alvo abaixo dos 25 milhões anuais, trabalhar o contrato expirante de Anfernee Simons e o vínculo de Sam Hauser como motores de salary matching, e mexer cedo o suficiente para não ficar encostado ao second apron sem flexibilidade.
Neste cenário, Neemias funciona como travão de risco. O pior caso, hoje, já não é ficar sem poste. É ficar com um titular competente que protege o cesto, e arriscar apenas no perfil complementar. O melhor caso é mais ambicioso. É Neemias provar, nos próximos meses, que consegue aguentar minutos de fecho, melhorar leituras em esquemas de trocas e continuar a ser uma máquina em diferencial on/off. Nessa hipótese, o poste que falta já não é o titular de um contender, mas sim um jogador de rotação, talvez mais móvel ou com mais alcance de lançamento, para adaptar a equação consoante o adversário.
Seja qual for o desfecho, a temporada que começou como ano de transição está a transformar-se numa auditoria profunda ao que Boston tem em casa. Brown está a jogar ao nível de candidato a All-NBA, com 28.4 pontos por jogo e noites como os 42 pontos frente aos Knicks. Payton Pritchard somou 42 pontos em Cleveland. Jordan Walsh e Josh Minott cimentam-se como extremos de rotação que defendem, correm e fecham jogos. E Neemias Queta, num misto de números avançados, vídeo e reconhecimento externo, deixou de ser solução de recurso para entrar nas conversas sobre o próximo núcleo.
Ainda assim, a margem de erro continua curta. Se Brown, White ou Pritchard falharem tempo prolongado, tudo pode desmoronar. A profundidade é limitada, especialmente no jogo interior. Mas também existe um cenário em que esta equipa continua a trajetória ascendente e se posiciona como ameaça legítima no Este quando, e se, Tatum regressar. Cada vídeo da estrela em reabilitação alimenta essa possibilidade. Cada vitória de prestígio reforça a ideia de que os Celtics de 2025-26 podem não ser uma equipa de play-in. São candidatos aos playoffs, com potencial para incomodar qualquer adversário.
Quarto de época não é sentença, mas sinal
Vinte jogos não decidem carreiras, mas começam a desenhar tendências. E a tendência em Boston é de que esta não é a equipa que muitos imaginavam na semana em que se trocou Porziņģis e Holiday, e se abriu mão de Horford e Kornet. Não é o desastre anunciado. Não é, ainda, um candidato a título. É um grupo que defende, que compete, que perde jogos como o de Minnesota porque não tem margem, mas que já mostrou ser capaz de ganhar de forma consistente a equipas de topo da conferência.
No centro de tudo isto está um poste que, há poucos meses, era quase sinónimo de fragilidade estrutural. O interesse em Day’Ron Sharpe revela que os Celtics ainda não fecharam o dossiê “poste do futuro”. O que os últimos jogos mostraram é que, qualquer que seja o nome que chegar, vai entrar num frontcourt que já tem uma referência.
Um quarto de época foi suficiente para Neemias Queta obrigar Boston a reescrever o plano. O poste que Sacramento dispensou em 2023 e que Boston transformou num contrato two-way há duas épocas é hoje o jogador com maior impacto estatístico de todo o plantel. Mike Brown admitiu antes do jogo de terça-feira, com um sorriso resignado: “Parece que ele encontrou uma casa”. Encontrou mesmo. E essa casa, ao fim de 21 jogos, está mais sólida do que qualquer previsão de outubro sugeria.






