Numa única semana, Luka Dončić e Donovan Mitchell juntaram-se ao clube dos 60 ou mais pontos, com exibições monstruosas frente a New York Knicks e Chicago Bulls, respetivamente. Luka “ficou-se” pelos 60, enquanto Mitchell foi aos 71, em dois jogos mágicos que, ainda assim, se vão tornando mais usuais na NBA. Voltou a pergunta: será esta a era mais talentosa da liga? Comecemos pelo contexto.
Olhando para os gráficos, vê-se que o número de jogos com 50+ e 60+ pontos tem subido nos últimos anos. Tirando a anomalia de 2006/2007, e sem estar a explicar-vos o que são causalidade e correlação, foi por essa altura que saiu o hit “Hips Don’t Lie” da Shakira. Deixemos isso. Fora essa exceção, o crescimento tem sido quase constante, tal como os números médios de PACE (posses por 48 minutos) e de Offensive Rating (pontos por 100 posses). Há mais posses, há mais lançamentos e, portanto, mais pontos.
Outra questão é o tipo de lançamento. Enquanto os lances livres descem ligeiramente, os triplos tentados e convertidos aumentam de forma sustentada. Já os lançamentos de dois pontos caem em volume, mas não tanto em conversão, o que sugere ganho de qualidade. O talento não terá explodido no topo, mas sim na base e na média. Hoje, em média, os jogadores são mais capazes ofensivamente e as regras defensivas dão mais liberdade aos ataques, facilitando jogos com pontuarios “anormais”.
Hesitação
Há vários pontos que ligam as exibições de Luka e de Spida. O principal é a forma como manipulam defesas. A “simples” hesitação antes do ataque mantém a defesa alerta e dá a ambos tempo para ler e decidir.
Paragem rápida
Os americanos chamam-lhe stop on a dime: a capacidade de travar e explorar o excesso de agressividade do defensor para criar espaço. Dončić fá-lo mais com ocupação de espaço e amplitude de movimentos.
Já Donovan Mitchell consegue-o pelo centro de gravidade baixo e drible também baixo, o que lhe permite parar mais rápido e manter a bola perto.
Bloqueio direto
Como portadores principais nas respetivas equipas (Mitchell divide com Garland, ausente contra os Bulls), ambos vivem muito de ações de bloqueio direto. A abordagem difere. Dončić aguenta contacto e usa o corpo para semear dúvida e conquistar posição para o lançamento.
Mitchell depende mais da explosividade. Contra Chicago, isso empurrou a defesa para um registo mais conservador e deu-lhe mais liberdade para lançar de fora.
A leitura de jogo de ambos e a tal manipulação geram coberturas diferentes e reações distintas. Colocam o defensor no bloqueio e saem pelo lado contrário: Dončić mantém o seu marcador preso à anca, controlando-o com o corpo.
Mitchell usa a explosividade e a rapidez no arranque para ganhar espaço e, à chegada da ajuda, decide.
Capacidade de criação individual
Jogadores desta qualidade têm sempre, no seu arsenal, formas de gerar pontos sozinhos. Dončić é capaz de usar ângulos e a agressividade do seu defensor para seu proveito. Mantém sempre o defesa atento, com fintas de corpo e constantes acelerações e desacelerações, utilizando o corpo para saber onde está o jogador que o defende.
Mitchell é muito mais capaz de usar a sua explosividade e o arranque mais perto do chão, para ganhar logo a vantagem inicial ao seu defesa. Tem também uma capacidade atlética que lhe permite mudar de direção e alterar a posição do seu corpo com facilidade, o que deixa sempre a dúvida na cabeça dos defesas.
Ambos bem capazes de lançar atrás da linha de três pontos, utilizam também essa faceta para colecionar pontos. Luka mantém o seu defesa pronto para defender a penetração e aproveita o seu step-back longo para ganhar espaço suficiente para o lançamento.
Donovan Mitchell obriga o seu defesa a dar mais espaço pelo perigo do arranque e é isso que lhe garante espaço suficiente, seja após mudanças de direção com o drible, seja com chegadas ao ataque e pull-ups antes da chegada dos oponentes.
Finalização interior
Protegendo a bola com o corpo, Luka chega perto do cesto e usa fintas de corpo e de lançamento para ler a reação do defensor. Muitas vezes absorve o contacto e ganha falta.
A estatura de Mitchell, mesmo com capacidade vertical, não lhe permite finalizar tão facilmente perto do aro. Recorre mais a finalizações “à volta” dos postes contrários.
A diferença principal
Luka é muito mais capaz no poste. Com 2,01 m e 104 kg, como exterior, quase sempre leva vantagem física e tem excelente jogo de costas. Usa o corpo para sentir o defesa, foge da ajuda no limite e lança por cima.
Mitchell, por sua vez, participa mais fora da bola. Tem na equipa mais e melhores portadores de bola, o que lhe permite vir de fora da bola, a partir de bloqueios, normalmente para atirar.
O que os une
Ambos assinaram jogos de 60+ pontos, ambos foram a prolongamento e ambos forçaram esse prolongamento após ressalto ofensivo nascido de um lanço livre falhado.
Foram duas exibições de sonho de dois dos mais talentosos atacantes da associação. Há pontos comuns, mesmo que os caminhos para lá chegar sejam diferentes. A NBA segue numa direção que abre espaço a que jogos destes aconteçam mais vezes. Antes do meio da temporada, já contamos dois jogos com 60+. Nos últimos 20 anos, só por duas vezes houve mais, e esta época ainda vai a meio. Habituem-se: estas marcas vieram para ficar.